Uma oferenda a Ceres
Autor: Dirck van Baburen
Centro de Fabrico: Utreque, Países Baixos
Data: Século XVII
Material: Óleo sobre tela
Dimensões (cm): Larg. 173; alt. 130
Proprietário: Palácio Nacional da Ajuda
N.º de Inventário: PNA66705
A obra de Dirck van Baburen é composta por cenas religiosas e cenas de género. Estudou com Paulus Moreelse em Utrecht. Em Itália, teve como patronos Vincenzo Giustiniani e o Cardeal Scipione Borghese. O trabalho de Van Baburen mostra a influência de Caravaggio e o uso teatral do claro-escuro.
O efeito de zoom do italiano, retratando os assuntos com metade do comprimento, preenchendo a imagem, também inspirou as composições dramáticas de Van Baburen. De volta a Utrecht, continuou a pintar no mesmo estilo, trabalhando com Hendrick Ter Brugghen.
Van Baburen, Ter Brugghen e Gerard van Honthorst ficaram conhecidos como “Os Caravaggistas de Utrecht”.
“A Música nas coleções do Paço”
«Ceres, na versão romana da grega Deméter, era a deusa da terra e da fertilidade. De uma relação com Júpiter (Zeus), teve a filha Prosérpina (Perséfone) que, pela sua beleza, atraiu as atenções de Plutão (Hades). Num dia em que a deusa se entretinha a colher flores com as ninfas oceânides, raptou‐a e casou com ela, transformando‐a, assim, na rainha dos Infernos. Ceres tentou resgatá‐la, mas Plutão só permitiu que ela repartisse uma parte do tempo nos Infernos e outra parte na Terra.
Os “Mistérios de Elêusis” assentavam neste mito e realizavam‐se duas vezes por ano: Os Mistérios Menores, em março, e os Mistérios Maiores, em setembro. Um dos objetivos era instruírem iniciados no culto à deusa, iniciados esses a que chamavam “misthai”. Uma das regras essenciais destes cultos era o secretismo de que se rodeavam, não podendo revelar a ninguém o que lá se passava. Os Mistérios tinham quatro ministros oficiantes, um dos quais se chamava Assistente ao altar, cujo traje representava a lua. Estas cerimónias de iniciação foram levadas para Roma, celebradas por mulheres vestidas de branco, com grinaldas sobre a cabeça.
Nesta imagem, pode entender‐se uma homenagem a Ceres integrada numa destas cerimónias, onde o alaúde nas mãos da oceânide, cumpre uma função cultural. Uma das outras duas figuras femininas pode supor‐se a própria Prosérpina, de cesto de flores nas mãos a evocar a cena do seu rapto, enquanto a outra, de joelhos, parece oferecer uma grinalda a uma figura masculina. Esta figura, que segura um turíbulo, pode associar‐se ao Assistente do altar. Habitualmente, o turíbulo é usado, ainda hoje, para queimar incenso e espalhar o fumo aromático assim libertado. O incenso, na sua etimologia latina (incensum), significa “queimado”. Utiliza‐se em cerimoniais religiosos e de purificação, o caso, aqui, na homenagem à deusa.
Os gregos e, mais tarde e à sua semelhança, os romanos, explicam a natureza através da sua rica mitologia, deificando tudo o que a envolve e a faz viver. Neste mito de Ceres e de Prosérpina pode extrair‐se a explicação para a fertilidade ou renovação da natureza através dos períodos em que a deusa permanece à superfície ou nas profundezas da terra: uma criativa alegoria para o período infértil (do Outono e Inverno) e para o renascimento da natureza (Primavera e Verão). No pormenor mitológico em que Prosérpina come um ou mais grãos de romã, o que a impediria de regressar à Terra e que só conseguiu por intervenção de Plutão, também se pode associar às sementes que se enterram, germinam e frutificam na Primavera e Verão.
[…]
O alaúde, tangido por uma das oceânides, é um instrumento já na sua última fase de evolução, com seis cordas duplas (seis ordens). A posição da mão da tocadora mostra que o pintor conhecia bem o instrumento, já que as cordas pressionadas pelos dedos sugerem uma posição (acorde) intencional. Poder‐se‐ia até saber quais os sons resultantes, só que a afinação do instrumento nunca foi padronizada, porque os tamanhos eram variados e, por consequência, também as suas afinações.
[…]
No contexto desta pintura, a função do alaúde insere‐se na homenagem à deusa e a sonoridade resultante pode supor‐se intimista, de elevação espiritual.»
Eduardo Magalhães
“A Flora nas coleções do Paço”
«A partir das primeiras décadas do século XVII na Europa, nos países do norte e centro da Europa, a emancipação temática da pintura de flores em vasos ou naturezas-mortas, deve-se indubitavelmente aos novos conhecimentos do domínio botânico e ao interesse que as novas espécies florais divulgadas suscitavam no meio da sociedade europeia erudita.
[…]
[À] margem da cultura florística que se expandia pelos jardins da aristocracia ou das classes abastadas, proliferavam as encomendas de pinturas que, naturalisticamente, refletiam esse novo mundo de exóticas e que espelhavam não só a capacidade económica, mas também a erudição de valores simbólicos, vigentes desde a Antiguidade, a par do conhecimento das novidades que o encomendador possuía.
[…]
[Esta obra] é um retrato desse ambiente cultural do período, e que se crê ser atribuído a Dirck van Baburen (c.1595-1624), um pintor relacionado com o círculo de artistas residentes em Utreque.
[…]
Antes mesmo d[a] gramática de ilustração científica ser transposta para a maioria de naturezas-mortas que conhecemos, de artistas como Balthasar van der Ast e Ambrosius Bosschaert II, as flores da primavera que os jovens levam para os festejos de Uma oferenda a Ceres […] refletem esse naturalismo vigoroso e delicado que perpassa pelas gravuras dos jardins em miniatura de Crispin de Passe e que van Buren capturou.
No quadro, são ainda as rosas que mais saltam à vista. À meia-dúzia de rosas damascenas, junta-se o amarelo vibrante e alegre de uma rosa – Rosa foetida (Herrm.), também conhecida por Rosa lutea (Mill.) ou Rosa Persa Amarela, descrita em primeira mão no herbário de 1532-53 de Gherardo Cibo, onde se encontra a mais completa informação sobre as rosas cultivadas no Renascimento. Hipoteticamente podia ter sido introduzida nos jardins da Andaluzia no século XIII, mas só em 1583, temos conhecimento fidedigno da sua introdução em Viena de Áustria pela descrição do botânico Clúsio. À época, era a única rosa amarela que se conhecia e gerava, por isso, um enorme interesse.»
Sasha Assis Lima