Tapeçaria Publius Decius Mus: Publius Decius Mus explica o sonho aos seus soldados
Autor: Peter Paul Rubens (cartonista) e Jan Raes II (tapeceiro)
Centro de Fabrico: Bruxelas
Data: 1618-1643
Material: Lã e seda
Dimensões (cm): Alt. 412; larg. 340
N.º de Inventário: PD0403
A heroica morte do cônsul romano é um “exemplum virtutis“, um exemplo de um ato particularmente virtuoso. É citado em várias ocasiões na literatura clássica, mas Rubens foi o primeiro artista a traduzir para pintura o relato de Tito Lívio da guerra entre romanos e latinos no ano 340 AC (Ab urbe condita, Livro VII, capítulos 6, 9 e 10).
Os habitantes da planície do Latium revoltaram-se contra o domínio de Roma e desafiaram os romanos para uma batalha; os latinos tinham um exército superior em número. Os comandantes do exército romano, os cônsules Decius Mus e Titus Manlius acampam em Capua e têm o mesmo sonho: o exército cujo comandante morrer na batalha sairá vencedor.
Nesta sequência de pinturas, Rubens restringe a sua narrativa ao herói.
Na primeira, Decius Mus descreve, sozinho, o seu sonho ao exército. Titus Manlius só aparece na última pintura. O artista mostra Decius Mus em cima de um pedestal numa pose imperiosa. Os porta-estandartes de diversas unidades agrupam-se à sua frente em diversos trajes de guerra.
Rubens seguiu uma fórmula pictorial que era muito comum na antiguidade, onde o comandante fala aos seus subordinados de uma posição mais elevada. Descrições deste tipo podem ser encontradas em momentos triunfais de Roma tais como o Arco de Constantino e a Coluna de Trajano. Rubens usou cenas relevantes desta última como um modelo direto. Ele aprovava o reaproveitamento de imagens antigas criativamente mas, no seu ensaio “De Imitatio Statuarum”, assinalava de que era necessária uma boa compreensão do modelo. A translação efetuada por Rubens, levando o relevo da cena para o meio da pintura mantém o caráter imobilista, mas o arranjo simétrico das figuras do modelo antigo é submetida a uma variação animada, envolvendo um largo número de movimentos. O estilo de pintura aberto dá-nos um elemento adicional de dinamismo.
Publius Decius Mus
Político da República Romana, que pertenceu à gens Decia (família plebeia da antiguidade, que se tornou conhecida na história romana por vários membros se sacrificarem pela preservação de seu país).
Publio Décio Mus é mencionado, pela primeira vez, em 352 a.C., quando foi designado um dos quinqueviri mensarii (banqueiros públicos), que tinham por objetivo liquidar, até certo ponto, as dívidas dos cidadãos.
Em 343 a.C., serviu como Tribuno dos Soldados (patente de oficial numa legião romana) sob o comando do cônsul Marcus Valerius Corvus Arvina na Primeira Guerra Samnita. Devido ao seu heroísmo, na Batalha de Satícula, salvou o exército romano de um perigo iminente.
Em 340 a.C., foi eleito cônsul, juntamente com Titus Manlius Imperiosus Torquatus. Nesse ano, começou a Segunda Guerra Latina (340-388 a.C.), durante a qual se travou a Batalha do Vesúvio, que ocorreu entre a cidade de Nápoles e o Monte, comandada pelos dois cônsules.
Durante esta batalha, Públio Décio Mus ficou famoso pelo seu lendário devotio, no qual jurou sacrificar sua própria vida em troca de uma vitória. Segundo Tito Lívio, Décio Mus teve um sonho premonitório, anunciando que o exército, cujo general morresse durante a batalha, ia ser o vencedor. O devotio (uma forma extrema de votum, promessa feita a uma divindade), é um ritual romano e o mais famoso da sua história está relacionado com Públio Decio Mus. Este costume também é conhecido em lendas gregas.
“A Flora nas coleções do Paço”
«As qualidades intrínsecas e virtudes de cada fruto, durante a Idade Medieval e o Renascimento, sofreram alterações contínuas consoante as leituras e interpretações que se faziam dos textos sagrados e filosóficos coevos, reavaliando ou repetindo as informações estabelecidas pelos autores da Antiguidade clássica. De uma maneira geral, durante essas épocas, a ideia prevalente no seio da medicina, consistia nos cuidados que se deviam ter com os frutos frescos, porque pertenciam à categoria de alimentos frios e perigosos, embora pudessem estimular o apetite.
Nos ambientes áulicos da mesa renascentista, os frutos vieram, no entanto, a ocupar um espaço importante na confeção de pratos, ligados a um estímulo do gosto e do olfato. Com formas de apresentação cada vez mais refinadas, destinavam-se ao embelezamento de mesas sumptuosas, e, ocasionalmente, eram também usados como refrescadores do palato, intercalados pelos pratos cozinhados.
Paulatinamente, a partir dos finais do século XVI, os frutos vão também adquirindo um papel cada vez mais importante no grande palco das representações pictóricas das espécies, acentuando-se a originalidade das suas formas e variedades, na observação e interpretação da prodigalidade dos dons da terra.
Nesse mundo de representação e, na sequência do que já vinha sendo comum na Itália, manifestou-se uma produção de pinturas flamengas que consistiam na representação de cenas de mercado com uma abundância de produtos comestíveis de variadíssimas espécies. De entre os frutos de consumo tradicional, surgiam outros, recentemente importados, na representação subsequente de naturezas-mortas, acompanhados por flores, minúsculos animais e artefactos criteriosamente escolhidos que podiam ser de vidro, metal ou porcelana. Os frutos, contudo, destacavam-se pela sensualidade da sua natureza orgânica, numa apresentação sublimada pela cor, transmitindo os cheiros e os sabores imaginados, num convite à fruição da sua tateabilidade e do gosto do seu interior, em oposição aos outros elementos representados.
As tapeçarias da série Publius Decius Mus […] foram executadas, na primeira metade do século XVII, com o patrocínio dos arquiduques Alberto VII da Áustria e Isabel Clara Eugénia, filha de Filipe II de Espanha, que fixaram a sua corte em Bruxelas, tendo acolhido sob sua proteção alguns dos artistas mais importantes do seu tempo, entre os quais Peter Paul Rubens, designado como pintor oficial da corte em 1609, que foi o autor dos cartões para a série destas tapeçarias (BAUMSTARK,1985).
Jan II Raes (ca 1570-1643), que pertencia a uma das mais conceituadas dinastias de tapeceiros com atividade em Bruxelas, seria uma escolha natural para a importante encomenda. Mestre de uma oficina que empregaria, provavelmente, à volta de cento e cinquenta artesãos, teria os requisitos de qualidade e invenção para reproduzir, com rigor, os cartões que Rubens executara para a encomenda da série Publius Decius Mus.
No que concerne às cercaduras das tapeçarias, os tapeceiros eram livres de escolher e adaptarem moldes de desenho locais e tradicionalmente em uso nas oficinas. A elaborada variedade de frutos e vegetais, em cestos, com os elementos simbólicos da passagem do tempo, do globo terrestre, do vento e de Mercúrio, do reino aquático das nereidas, dos sátiros, bodes e boi enfestoados, papagaios e mascarões, fazia parte de um vocabulário presente em outras tapeçarias da oficina de Jan II Raes.
A variedade esfu[z]iante dos pomos representados, e o contraponto vegetal entre espécies familiares à Europa e outras mais recentes do continente americano, fazem parte não só das cercaduras das tapeçarias da coleção do Paço dos Duques, como de outros exemplares da mesma oficina que tratam o mesmo tema, residentes em coleções em Praga, Hamburgo e no principado de Liechtenstein.
O milho, o cacau e as abóboras do género Cucurbita faziam parte do fascínio por produtos alimentares exóticos e raros, desde o começo do século XVI. Descritos, em primeira mão, de forma bastante rigorosa, por Gonzalo Fernández de Oviedo, cronista da presença espanhola nas Américas, o interesse na sua representação ter-se-ia disseminado primeiramente na Flandres, onde o cronista aportou, em 1516, ao regressar da primeira viagem ao continente americano, e onde teria mostrado desenhos das espécies.
Na representação dos frutos e vegetais das tapeçarias de Publius Decius, são particularmente interessantes os detalhes que migram de forma esquemática de uma planta para outra, como no caso das cucurbitas (abóboras) que se parecem com as couves, tal como as vemos representadas em várias pinturas do século XVI. Também relativamente às cabaças, tanto podemos estar perante a Lagenaria, que chegou à Europa através de África e com uma história de domesticação de milhares de anos, ou uma das muitas formas de Cucurbita pepo que começou a ser comum ainda no século XVI e que tinha acabado de chegar do continente americano.
Perante a elaborada ornamentação das cercaduras, e a profusão barroca dos frutos, legumes e cereais emaranhados uns nos outros, não se pode retirar ilações sobre os elementos simbólicos que levem a entender a preferência de uns em detrimento de outros. A escolha foca-se na linguagem coeva grandiloquente que reverbera as múltiplas cornucópias da Antiguidade.
As várias espécies de Prunus, maçãs, peras e uvas, cherovias e nabos, hortaliças, aspargos e alcachofras, os cereais, e todos os novos produtos vindos tanto do continente americano, assim como os frutos nobres, azeitonas, limões e romãs, importados de Espanha e Portugal (GUICCIARDINI, 1613 [1567]), tinham, à época, uma dimensão prática de consumo, através dos seus efeitos físicos na alimentação, daí derivando uma possível interpretação que os relaciona tanto com os ostensivos prazeres da carne, como com os antídotos para esses excessos. Contudo, as uvas, as maçãs e as romãs persistem em provável conformidade com a sua interpretação simbólica constante que, desde os alvores da sua extensa narrativa, sempre se destacaram nas representações do mundo cristão.
Não obstante ter sido uma época com novas janelas que se abriam ao mundo, onde confluíam imagens paradisíacas de terras por explorar, e a vertiginosa chegada de fauna e flora que expandia a imaginação dos europeus, a realidade dos tempos em que tanto o pintor Rubens como o tapeceiro Jan II Raes viveram e trabalharam, seria melhor descrita como uma época imersa no desespero das trágicas conflagrações entre Protestantes e Católicos. A encomenda que Rubens recebeu do mercador genovês Franco Cattaneo para representar episódios da vida do cônsul romano Publius Decius Mus não podia deixar de o interessar, visto o seu conteúdo e exemplo moral serem extremamente edificantes para os tempos que decorriam. Segundo o que escreveu, Rubens admirava “o cônsul romano que se sacrificou pela vitória de todos os romanos” (HERRERO CARRETERO, 2007) e, embora enaltecendo as proezas do herói que Tito Lívio ilustrara na sua História (TITUS LIVIUS, 1853), a narrativa da representação, através das tapeçarias, foca-se na moralidade estoica e no altruísmo do sacrifício do cônsul romano.
Porém, a divisa latina na parte inferior de cada tapeçaria nada tem a ver com os feitos de Publius Decius Mus. Ars et vis divina superant omnia faz parte do conjunto harmónico do desenho total das cercaduras, tal como a encontramos também na série de tapeçarias de A história de Sansão da oficina de Jan II Raes. “A arte e a força divina tudo vencem” era o lema do tapeceiro, que, na sua idade madura, teria acrescentado e reforçado orgulhosamente a assinatura Jan Raes.»
Sasha Assis Lima